29/03/2010

NOSTALGIA DA LAMA

A velha e boa hipocrisia brasileira,
cada vez mais em alta, cada vez mais classista...

Escândalos envolvendo os jogadores Adriano e Vagner Love,
do Flamengo, escancaram o preconceito de classe no Brasil

Talvez não seja correto dizer que o esporte é um espelho da sociedade, mas a maneira como os fatos do esporte e seu entorno são lidos pela mídia certamente diz muito sobre ambas (a sociedade e a própria mídia).

O "mea culpa" do golfista Tiger Woods diante das câmeras expôs muito mais que suas infidelidades conjugais. Colocou a nu uma cultura manifestamente puritana que transforma em espetáculo midiático a repressão de suas pulsões.

Como se sabe, muitos norte-americanos, talvez a maioria, acham que gostar de sexo é uma espécie de doença.

No Brasil, a cobertura e a repercussão crítica dos recentes escândalos envolvendo os astros do futebol Adriano e Vagner Love revelam, entre outras coisas, um indisfarçável preconceito de classe.

O que mais escandaliza a chamada crônica esportiva, com honrosas exceções, parece ser o ambiente em que os personagens foram "flagrados". A própria recorrência desse verbo é significativa, como se estar num baile funk ou simplesmente na favela fosse por si só uma atitude ilícita ou, no mínimo, suspeita.


Na Chatuba e na Barra

O vínculo entre os termos favela e crime, martelado durante décadas pelos meios de comunicação, parece ter-se tornado indissolúvel.

Condena-se Adriano não tanto por trocar socos com a namorada, mas por fazê-lo no morro da Chatuba, e não numa cobertura na Barra da Tijuca ou num palacete em Milão.

O viés de classe nunca ficou tão evidente, aliás, como quando o jogador, um ano atrás, deixou de se reapresentar a seu clube, a Internazionale de Milão, e se refugiou durante três dias no bairro onde se criou, no Rio de Janeiro. A perplexidade foi geral, na imprensa e no mundo futebolístico.

A pergunta que se repetia era: como um sujeito abre mão de milhões de euros, do destaque num clube de ponta, de uma cidade sofisticada, para voltar à favela? O corolário, explícito ou subjacente, era mais ou menos o seguinte: "Quem nasceu na maloca nunca vai deixar de ser maloqueiro".

Uma espécie de "nostalgia da lama" arrastaria Adriano para baixo -ainda que, topograficamente, para cima.
O que escandaliza, no fundo, é a recusa em aderir aos valores, condutas e discursos tornados praticamente compulsórios para quem "vence" na nossa sociedade.

Não se perdoa Vagner Love por optar por um baile funk na Rocinha em vez de uma boate na zona sul do Rio. No primeiro, estão os "bandidos"; na segunda, a gente de bem.

Pouco importa que o tráfico que mata tanta gente no morro se alimente do consumo recreativo de muitos habitués das casas noturnas chiques.

Num país de "malandros com contrato, com gravata e capital", não escandaliza ninguém que Kaká saia publicamente em defesa dos líderes de sua argentária igreja, investigados em dois países por estelionato e lavagem de dinheiro.

Kaká, diz a crônica em uníssono, é um rapaz de boa cabeça, de boa família, de boa "estrutura". Mas Vagner Love aparecer num baile na Rocinha ladeado por traficantes armados (algo que talvez ocorresse com qualquer celebridade que visitasse o local) é intolerável.

Motel e travestis


Para reforçar a constatação de que, entre nós, o viés de classe é ainda mais forte do que o viés moralista, um caso exemplar é o de Ronaldo, "flagrado" (olha o verbo de novo) com três travestis num motel do Rio.

O que mais se ouviu, nos bastidores da imprensa, foi: "Como é que um sujeito com a grana que ele tem vai se meter com travecos de rua? Era só pegar o telefone e encomendar a perversão que quisesse, no sigilo do seu apartamento ou de um hotel de luxo".

Ou seja, dependendo do montante gasto, do cenário e dos figurinos, tudo é bonito e aceitável.

Artigo publicado no

Caderno Mais da Folha de São Paulo de 21/03/2010

Por JOSÉ GERALDO COUTO


PS:

"Se fosse você, um famoso jogador de futebol,

preferiria ser visto em um Baile Funk na Rocinha,

ou em um Culto da Renascer???


5 comentários:

  1. Fazendo o advogado do diabo, ou respondendo a advogada, o Adriano voltou as raizes pq no Flamengo é uma varzea, ele manda, chega e treina a hora que quer e se quer, na Inter nao era assim, volto pro Brasil gigante! a balada em Milão com top model em palacio deve ser bem pior que no morro com a mulher melancia para um atleta! e comprar uma moto pra traficante, tirar foto com varios armados e ir a favela pode nao ser ilicito, mas é bem suspeito! claro que o problema da violencia no Rio não é por culpa disso, muito menos baile funk, mas ele é envolvidão e não condeno por ser, só não fico me enganando e defendendo... condeno politicos corruptos como o locão do governador do Rio que chorou pelo royalties perdidos do pre sal, que segundo ele, seria "repassado" para as olimpiadas, TSA! e todos os safados de Brasilia querem um pedacinho desse bolo ai ne?
    Sobre o Ronaldo o assunto seria melhor tratar como, é melhor assumir que confundiu travestis com prostitutas, que assumir que estava noiado atras de droga para nao perder um patrocinio milionario com a nike...
    Esse blog é muito bom, mas ta parecendo blog de carioca flamenguista fanatica! he... vo te falar uma parada, "as vezes, a unica coisa verdadeira em um jornal é a data!"

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  2. vi numa reportagem de TV na época um promotor (ou algo assim) dizer que o Vagner Love, como um esportista renomado, teria que dar exemplo à sociedade e ficar longe de bandidos. A resposta de seu advogado foi ótima, lembrando as origens hunildes do jogador e frisando que se ele vai visitar amigos e se divertir na favela, onde infelizmente tem gente armada, isso não é um problema direto e exclusivo dele, mas sim dos órgãos competentes - ou nem isso...

    Época de Copa e daqui para frente virão outros tantos bafões relacionados a futebol, aguardem!

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  3. A proposta em divulgar este artigo, não tem nenhuma vinvulação futebolística com este ou aquele time, nem defender o jogador y ou z, muito pelo contrário. E sim, levantar o debate de como no Brasil a Hipocrisia continua se enraizando tão profundamente em nosso ideário social, estando cada vez mais bem representada pelas empresas de comunicação e pelos ditos, formadores de opinião.
    Onde o preconceito de classe é reinante, e que em cidades como o Rio de Janeiro, recheada e costurada por comunidades, a convivência é quase que forçada para alguns, e ainda mais nítida nos campos de futebol, uma vez que a grande parte dos craques da atualidade são oriundos destas, e desta forma, tem laços de amizade e de parentesco verdadeiros, sendo totalmente compreenssível seus retornos a estes lugares. Se são "envolvidões" ou não, não temos que jugar, como se disse, temos tantos outros "envolvidões" com dinheiro público por exemplo, e a estes sim, devemos julgar com afinco e plenos de direito.
    Assim como "Se pegou traveco, se estava atrás de droga..." não nos interessa, e sim, como o senso comum, costuma varrer as coisas p/ de baixo do tapete, ao invés de reconhecê-las e refleti-las com lucidez, como são, respeitando as liberdades individuais, escolhas sexuais e etc.

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  4. Esta certissima! concordo com quase todo o texto da Folha...
    Mas no culto da Renascer nao existe só Kakas, que sai em defesa dos líderes de sua argentária igreja (acho que a mais das evangelicas!) e se casa com a herdeira da Daslu... um dia desses peguei um motorista da Ed. Abril que frequenta a tal igreja, perguntei o que ele achava da "administradora" da Renascer ter sido presa, me respondeu que sua familia frequentava a igreja para agradecer, orar, essas coisas e não cabe a ele julgar, pois rezava pra Deus, nao para a tal "administradora"!
    Então, nem tanto ao "céu" (igreja) nem tanto ao "inferno" (baile funk)!!!
    respondendo a pergunta do blog: tanto no culto da Renascer, como em um baile funk me veriam do mesmo jeito, respeitando e SEM PRÉ_CONCEITO!

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