19/09/2008

As duas Bolívias


Tudo vai bem em Bolívia. Tudo vai mal na Bolívia. A mudança de uma preposição altera tudo. Na Bolívia, a miséria é grande e o conflito entre os governadores dos departamentos ricos e o presidente mais identificado com os pobres parece estar longe de terminar. Em Bolívia, a população não passa de 176 mil habitantes de classe média. Na Bolívia, 60% de 9,2 milhões de indivíduos estão abaixo da linha da pobreza. As coisas são assim mesmo.


Veja-se o Brasil. Tudo vai bem. Todos estão contentes. Quem se importa com o fato de que o Brasil tem 76% de analfabetos funcionais, pessoas que sabem assinar o nome, mas são incapazes de entender o que lêem, e 10% dos assassinatos do mundo todo? Este último índice nos coloca ao lado do Iraque. Talvez entrar em guerra declarada pudesse conter a violência brasileira. Ao menos, cumpridos os acordos internacionais, seria necessário seguir algumas normas e respeitar alguns valores.


O mundo democrático está escandalizado com a 'inabilidade' de Evo Morales. A complexidade raramente aparece nos comentários de mídia. É preciso um herói e um vilão, um ganhador e um perdedor, o representante do bem e a encarnação do mal. Morales é o mais novo demônio. Está superando o seu amigo e mentor Hugo Chávez. Ele é feio, mestiço, tido por anacrônico e não usa gravata. Esse foi o primeiro sinal a preocupar os líderes mundiais. É quase impossível um presidente sem gravata respeitar os parâmetros da democracia ocidental. As estatísticas certamente mostram que não se pode confiar em presidentes sem gravata e que a maioria dos sem-gravata tende para o comportamento ditatorial. Na verdade, a política internacional divide-se hoje entre os com e os sem-gravatas. Evo Morales está do lado errado.

A ordem é esquecer o passado. Para que lembrar que na Bolívia quase nada deu certo nos últimos cinco séculos? Os espanhóis saquearam o ouro e a prata em nome dos mais altos princípios do capitalismo mercantil e do cristianismo então praticado como única verdade universal. As civilizações indígenas foram reduzidas à condição de mendicância. Na Guerra do Pacífico, contra o Chile, foi-se a saída para o mar. Sucessivas ditaduras e pseudo-revoluções aumentaram o atoleiro boliviano. Se não houvesse reclamações, com a plebe aceitando a sua condição de plebe e tratando de enfiar o rabo entre as pernas, o mundo globalizado não gastaria uma linha com a Bolívia. A pobreza extrema não atrai interesses.

Na Bolívia, não há mar. Em Bolívia, vive-se a 11 metros acima do nível do mar. Na Bolívia, nunca acontece algo de bom. Em Bolívia, nunca acontece nada. Na alta Bolívia, vive-se em baixa. Na baixa Bolívia, vive-se pacatamente em alta. Na Bolívia, a modernidade é uma quimera. Em Bolívia, ser moderno significa viver tradicionalmente o atual.

O capitalismo hipermoderno tem horror de países como a Bolívia, cheios de índios e de ressentimentos históricos. É gente que, desse ponto de vista, atrapalha a inexorável e invejável marcha do progresso. A Bolívia, América do Sul, está para a Bolívia, Carolina do Norte, assim como Paris, França, está para Paris, Texas. Nem isso. Contra os métodos errados de Evo Morales para salvar grande parte do seu povo da pobreza, oferece-se como alternativa não ter método algum. A idéia é que certos países só descobrirão o futuro quando apagarem o passado.


A Bolívia tomará o rumo certo quando Evo comprar uma gravata.

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