02/06/2009

OUTRO JUNHO _ E A ESTÉTICA DO FRIO

Estou em outro junho. Estou no meu apartamento em Copacabana, Rio de Janeiro, de calção e chinelos, assistindo ao Jornal Nacional na TV. Assisto uma matéria sobre uma festa popular na Bahia. As imagens: um trio elétrico sobre um caminhão arrastando milhares de pessoas seminuas, pulando, suando, bebendo e cantando sob um céu furioso. Não consigo me imaginar atrás daquele trio elétrico. Não consigo me sentir próximo do espírito daquela festa, embora esteja igualmente seminú e com calor e a notícia seja apresentada num tom de absoluta normalidade, como se aquilo fizesse parte do meu dia-a-dia. Assisto a seguir uma matéria sobre a chegada do frio no sul. Vejo o Rio Grande do Sul. Vejo os campos cobertos pela geada na luz branca da manhã, vejo crianças escrevendo com o dedo nos vidros dos carros, vejo homens de pala andando de bicicleta, vejo águas congeladas, vejo gente esfregando as mãos, gente de nariz vermelho, vejo a espectativa de neve na serra, vejo o chimarrão fumegando. Seminu e com calor reconheço imediatamente aquele universo como meu. Mas as imagens são apresentadas num tom de anormalidade, de curiosidade, de quase incredulidade, como se estivessem chegando de outro país -fala-se em "clima europeu"-, o que faz com que eu me sinta estranhamente isolado, mais do que fisicamente distante. Tenho a incômoda sensação de estar no exílio e ver, ao mesmo tempo, o Rio Grande do Sul de perto, por dentro e além das imagens. Percebo então o quanto me sinto separado do Brasil.

Mais que isso, percebo o quanto o gaúcho se sente e o quanto realmente está separado o Brasil. Constato que o obscuro sentimento que nutrimos de não ser ou não querer ser brasileiros tem alcance muito maior que o de mera curiosidade histórica ou de motivos de piadas entre nós. E não preciso avançar até os casos isolados em que este é um assunto ideológico. Só o fato de um sentimento estar assim latente no espírito do gaúcho já é o suficiente para que se estabeleça separação e distância. Acreditar não ser ou não querer ser brasileiro e ao mesmo tempo saber que, mais do que fisicamente ligado ao Brasil, ele é irreversivelmente brasileiro – porque no fundo sabe que esta separação é impossível –, deixa o gaúcho num misto de frustração e impotência que o leva, inevitavelmente, a ter que administrar um sentimento de inferioridade. Uma simples manobra de compensação – uma manobra de sobrevivência – basta para que este sentimento de inferioridade transforme-se em sentimento de superioridade. E pronto. O gaúcho se sente superior ao brasileiro. Separação e distância.

O afastamento – ou inconsciente ou ideológico – do Rio Grande do Sul, torna-o o lugar do Brasil que mais facilmente pode ser definido em duas ou três idéias redutoras, enquanto suas sutilezas de estilo parecem insondáveis.

O gaúcho acaba tendo uma visão caricata de si próprio, a partir da visão superficial que o Brasil tem dele e que ele, como brasileiro, compartilha e assume. O deslocado gaúcho tende sempre a encarnar a personagem "gaúcho" quando se comunica com o Brasil. Do outro lado, os brasileiros tendem sempre a tratar o gaúcho como uma personagem. Numa visão geral, digamos a partir do centro do País, qualquer povo em qualquer região tem sempre suas peculiaridades transformadas em clichês, mas aparece antes de tudo como brasileiro. O gaúcho parece ter antes de tudo seus clichês, depois ser brasileiro. O Brasil o vê lá longe, isolado, e só pode enxergar o que nele é gritante, só as diferenças que saltam aos olhos. E o gaúcho faz que sim.

Assistindo ao Jornal Nacional me dei conta de que acima dos clichês comumente usados para nos definir, acima de toda e qualquer idéia redutora – que representam sempre pequenos recortes, fragmentos da nossa realidade –; que acima também das nossas sutilezas de estilo, estava a diferença fundamental entre o Sul e o resto do Brasil – como símbolo não redutor, primeiro e inquestionável, abrangendo todos os outros –: o frio. Vi que o Rio Grande do Sul simbolizava o frio no Brasil – a chegada do frio no Sul, mesmo com aquele ar "acredite se quiser", está anualmente na pauta da mídia nacional. E me dei conta de que o frio simbolizava o Rio Grande do Sul. Passei a ver o frio como metáfora amplamente definidora do gaúcho.

Esta idéia foi-se enchendo de sentido na medida em que, morando no Rio de Janeiro e viajando constantemente pelo Brasil, passei a sentir o clima tropical – a regularidade de um clima de mudanças tão discretas entre as estações; o calor; a presença constante e vital do sol, do mar e dos rios – como um grande pano de fundo onde se repetiam certas características que pareciam unificar o modo de ser dos brasileiros em sua diversidade. Deparei-me em muitos lugares – e lugares distantes entre si – com um mundo de valores, de hábitos, de gostos e anseios compartilhados que para mim não tinham a mesma significação. Mais objetivamente, vivenciei a expansividade, o excesso, o emocional, o gosto pelas ruas, pela diversão, pela alegria, pelo culto ao corpo, pela dança, pelo ritmo, pelo colorido, pela espontaneidade, pelo caos, pelo múltiplo, pelo variado, pelo eclético, etc. Vivenciei tudo isso e muito mais, sempre sob aquele amarelo forte, aquele quase tom laranja da luz do dia. Foi quando comecei a entender melhor o esforço dos românticos, a atitude dos modernistas, a postura dos tropicalistas. E foi quando não entendi e não aceitei a nossa distância "fria". Eu confirmara que a riqueza cultural do Brasil residia na sua diversidade e, claro, o Rio Grande do Sul já tinha nisso a sua contribuição. E depois, ao encontrar para cada característica comum dos "brasileiros" uma contrapartida na minha maneira de ser, nos meus hábitos de "homem que veio do frio", me perguntei como era possível que se visse nisso um sinal de incompatibilidade e não o sinal de que uma estreita colaboração entre os dois "estilos" abriria uma perspectiva humana e criativa infinitamente rica de possibilidades.

Até quando essa dieta de brasilidade que nós gaúchos nos impomos? Aonde isso nos levará? E até quando essa dieta gaúcha que impomos ao Brasil, reduzindo-nos numa estreita e auto-indulgente visão caricata de nós mesmos e do nosso mundo? Por que uma comunicação natural e direta com o resto do país deve ser tão complicada e escassa? Por que não soar "normal" se somos brasileiros, se estamos fisicamente ligados ao Brasil, se fazemos parte da cultura nacional? Será que estamos fadados a que toda e qualquer expressão nossa soe sempre "folclórica"? Não iremos jamais compartilhar, contribuir regularmente, acrescentar de forma natural e efetiva com o país?

Penso nas queixas que ouvi de gente do Acre e do Mato Grosso a respeito do "gaúcho" que costuma chegar, esgotar a terra e sumir – enquanto mantém belas fazendas no Rio Grande do Sul. Penso nas cobranças dos gaúchos a Elis Regina e na expressão "vendidos", que tantas vezes ouvi ser usada em referência aos artistas que optaram por viver e trabalhar no centro do País – para qualquer brasileiro, vencer no centro do País é motivo de orgulho. Penso que ouvi em Porto Alegre alguém dizer que Lupicínio Rodrigues não era um compositor gaúcho, que ele fazia música brasileira – o fato de ser negro já parecia separá-lo um pouco da cor local.

Penso que os gaúchos devem se aproximar do Brasil. Se acham que são diferentes, tanto melhor! Penso que devem ambicionar – guardadas as proporções – contribuir tão fartamente para a cultura nacional quanto os nordestinos. Não quero dizer com isso que devam trocar a gaita pelo cavaquinho ou pelo berimbau – nem misturá-los acreditando que apenas o fato de estarem juntos já signifique uma fusão ou uma nova linguagem –; não acho que devam adotar o coco gelado no inverno, às margens do Guaíba. Acho, pelo contrário, que a aproximação dos gaúchos com o Brasil se dará no dia em que aproximarem-se de si próprios; no dia em que, refinando a sua linguagem, fizerem valer a completude da sua sensibilidade, deixando para trás um fragmento, uma curiosidade, ou como coisa imprestável, a caricatura redutora sob a qual se acomodaram.

Jorge Luis Borges disse que ao escrever não necessitava "tentar" ser argentino, porque já era. Se "tentasse" soaria artificial. Perfeito. O "tentar" ser é caricatura. Não "tentar" ser gaúcho, nem "tentar" ser brasileiro.

Quando falo em caricatura não estou falando em tradição. Porque a tradição não é jamais um engano. A tradição não deve ser um peso a ser suportado, nem um amontoado de fórmulas estanques a serem repetidas. O artista, para criar algo de valor, para realizar algo que faça sentido dentro do "fazer artístico", deve não apenas acompanhar criticamente a trajetória da sua própria sensibilidade, mas também dirigir seu olho crítico para o contexto em que está inserido e o que o precedeu – o que o levou à sua forma de expressão. Para estar viva, a tradição deve estar justificada na expressão contemporânea – e ela estará justificada mesmo que o novo represente uma ruptura. A expressão contemporânea, por sua vez, para justificar sua existência, deve ser eficaz o suficiente para promover um avanço na trajetória da tradição de que está imbuída, deve ser ela mesma tradição, tradição em movimento, tradição futura.

E penso logo: qual é a minha tradição? A tradição brasileira é minha? É natural que eu atue com ela e a partir dela? Mas tenho diferenças que me distanciam da "comunhão tropical"? Tenho mais forte a tradição de um "país frio", a tradição de um "país deslocado" do Brasil, ao mesmo tempo tão próximo do Uruguai e da Argentina? É natural que eu atue com e a partir dessa tradição "fria"? Sim! Devo fazer valer este sentimento de "dupla personalidade", devo querer o máximo desta "dupla cidadania", fazer dela fonte de criação e não fonte de diluição da minha capacidade criadora. Pensando o "frio" como metáfora amplamente definidora do gaúcho, acho que uma concepção "fria" tem muito o que fazer com uma concepção "quente". Estou pensando em uma "Estética do frio".




Ensaio publicado no livro Nós, os gaúchos, Editora da UFRGS, 1992.
Por Vitor Ramil
Mais em http://minerva.ufpel.edu.br/~ramil/vitor/estfrio.htm


Um comentário:

  1. Perfeito! Como sempre o Vitor Ramil retrata bem nossa condição. Porém me fez pensar em um detalhe: acho que quanto mais pensamos nessas diferenças, mais nos afastamos... como ele disse, inconsciente ou ideologicamente.
    Já fui mais "gaúcha" do que hoje sou e penso, hoje, ser mais brasileira... afinal de contas, não temos escolha... Ou melhor, podemos "escolher" nos aproximar desse nosso Brasil tão diferente de nós!
    Beijo grande e obrigada pela reflexão!!!!

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