06/03/2010

O poder da cultura na integração sul-americana

* Mariza Veloso


Não há como discordar do sociólogo José Maurício Domingues quando se reporta à questão do regionalismo na América do Sul afirmando que “pouco a pouco o novo regionalismo finca raízes societárias mais fundas entre nós. Dar-lhes organicidade e institucionalizá-las de forma inovadora é ainda um desafio”. Acredito que as “forças vivas” da sociedade são fundamentais nesse processo, e entre tais forças estão a cultura e o respeito à diversidade de suas manifestações, o que não deve ser visto como um direcionamento à fragmentação.

As sociedades sul-americanas sempre foram e tornaram-se, nos tempos atuais, cada vez mais complexas e plurais. A abertura do mercado de bens econômicos e bens simbólicos – longe da utopia homogeneizadora dos Estados modernos que pretendiam arquitetar uma identidade univocacional, ou dos prenúncios “achatadores” da globalização – ensejou que os sujeitos se tornassem cada vez mais “desencaixados”, o que pode significar uma maior mobilidade física e identitária.

Porém, se de um lado esse “desencaixe” pode significar desfiliação dos indivíduos ao todo social, de outro pode também significar novas modalidades de trocas sociais entre os indivíduos.

É importante enfatizar que, nos anos 1980 e 1990, o processo de redemocratização impulsionou múltiplas dinâmicas sociais de “revitalização” da sociedade, o que permitiu uma redefinição da identidade sul-americana, revendo-se a sua posição como subdesenvolvida, subordinada e subalterna em relação às potências internacionais e permitindo, assim, aos seus intelectuais e a outros agentes sociais assumirem uma fala mais altiva e independente.

De forma marcante, é precisamente na década de 1990 que ocorre a consolidação robusta e renovada de movimentos sociais latino-americanos, decorrentes, entre outros fatores, da consolidação de um novo ambiente democrático que, conjugado a um Estado enfraquecido pela política neoliberal, possibilitou o aparecimento de novos atores sociais no cenário sul-americano. São novas redes sociais, como as ONGs e as mídias alternativas, que influenciaram o fortalecimento de novas subjetividades coletivas. O discurso em torno da universalização dos direitos humanos, da justiça e da responsabilidade social assume a linha de frente do debate político.

Atualmente, vivencia-se na América do Sul um embate salutar entre a democracia representativa e a democracia participativa. Essa constatação se evidencia na geração de intenso debate, pesquisas e proposições tanto por parte de universidades e institutos de pesquisa quanto de organizações não-governamentais e governamentais.

Alguns analistas apontam que vários movimentos sociais efetivamente expressivos vêm procurando desenvolver e consolidar uma “política de autonomia” em relação ao Estado e aos partidos políticos, o que, por sua vez, tem fortalecido a sociedade civil (Domingues, 2007).

O que há de positivo nesse processo é que novas proposições e reivindicações podem ser agregadas à agenda pública, desatrelando-se de uma postura apenas reativa quanto às políticas públicas estatais. Assim, a dinâmica dos movimentos sociais e a proliferação de organizações que têm surgido na sociedade civil dos países sul-americanos começam a despontar como possibilidades concretas para a organização de movimentos sociais transnacionais.

Portanto, para viabilizar estratégias de integração regional sul-americana será necessário que estas sejam concebidas sem nenhuma estreiteza do nacionalismo cultural nem visão essencial e ontológica de cultura.

Nos anos 1920 e 1930, o nacionalismo cultural foi deveras importante em toda a América do Sul. É preciso observar que foi especialmente significativo para os processos de construção e consolidação das culturas nacionais, sendo estas pensadas a partir de seus elementos constitutivos, considerando as diversas etnias presentes no contexto sul-americano.

Nessa chave, a integração não pode ser confundida com unificação, mas sim como possibilidade de disseminação das diferentes tradições e práticas culturais que possam permitir novas conexões entre diferentes grupos sociais.

Igualmente, o processo de integração não pode ser pensado fora da moldura da configuração sócio-histórica e cultural, ou seja, ignorando os elevados índices de desigualdade econômica e social presentes nos países envolvidos nesse projeto recém-implementado, em que ganham destaque os baixos níveis de educação e escolaridade e as dificuldades de acesso à informação e aos bens culturais.

Caberia, aqui, introduzir a discussão de um eixo analítico que diz respeito às possibilidades renovadas de transformar a cultura em recurso simbólico, político e econômico que efetivamente contribua para a consolidação da democracia e da cidadania – poderosos vetores para a consolidação do processo de integração sul-americana.

Novas articulações

Entendemos que as manifestações culturais, estéticas e patrimoniais dos mais diferentes grupos sociais podem colaborar para a constituição de novos agenciamentos, de novas e renovadas identidades coletivas, viabilizando a reprodução social de diferentes grupos sociais, inclusive de múltiplos grupos subalternos, como os camponeses, os indígenas e os artesãos, e possibilitando novas articulações entre cultura e desenvolvimento sustentável. Mais uma vez, a cultura pode conectar recursos simbólicos, econômicos e políticos. O que se deseja enfatizar é a importância dos muitos saberes existentes em nosso continente, a riqueza e a diversidade de nossa cultura e de nossa arte. Assim, é preciso antes de tudo romper com os cânones da exotização da cultura e da arte latino-americanas, construídos pelo “olhar estrangeiro”, e permitir que os grupos produtores de arte possam expressar sua própria voz ou seu próprio sotaque, de forma altiva e com plena legitimidade.

Uma breve retrospectiva histórica evidencia a centralidade de algumas categorias discursivas na agenda interpretativa sobre a América do Sul. Nos anos 1950/1960, por exemplo, desenvolvimento e dependência eram noções básicas na proposição de políticas públicas; nos anos 1970/1980, o tema da democratização passou a permear todos os debates e fóruns de discussão; nos anos 1990/2000, a cultura entrou em cena como nova força propulsora na construção de novas solidariedades, novas possibilidades de troca entre os diferentes grupos sociais e países, assim como novos agenciamentos identitários.

No entanto, é bom ressaltar que a ênfase atribuída à cultura dos países da América do Sul se deve não só ao influxo da globalização – que simultaneamente valorizou e banalizou a singularidade das culturas – mas, sobretudo, aos processos de democratização experimentados pelo continente nas últimas décadas.

Estudando o lugar da cultura nas articulações propostas pelo Mercosul nos anos 1990, especialmente no que concerne à dinâmica das indústrias culturais e suas possibilidades integrativas, Alves de Souza (2004) observa:

“A integração latino-americana adotou padrões inovadores nos anos 1990, mas já veio alojada no contexto da globalização, portanto, muito marcada pela idéia de proeminência do mercado. A cultura foi colocada num lugar passivo, ou mesmo tendo como pressuposto uma idéia mecanicista de cultura” (Alves Souza 2004:35).

Contudo, parece-nos razoável afirmar que também houve avanço na discussão sobre as dinâmicas culturais e sua importância nos ordenamentos sociais e nos acordos coletivos nacionais e transnacionais.

É o próprio autor citado que afirma que, contemporaneamente, a cultura pode oferecer um repertório de elos identitários, transformando a idéia essencializada de cultura ou identidade, destinadas à repetição. Ao contrário, a dinâmica cultural atual é capaz de propor mecanismos e estratégias que suscitem o sentido de pertencimento e a capacidade de viabilizar direitos (Alves Souza, 2004:42).

Portanto, estabelecer conexões entre cultura e direitos parece ser uma tarefa urgente e necessária, especialmente quando se está tratando de América do Sul. E, nesse sentido, urge enfatizar a relação entre cultura e direitos humanos, cuja referência deve dirigir-se tanto às reflexões pertinentes às questões do acesso à cultura quanto à possibilidade de expressar e veicular conteúdos simbólicos e representações coletivas diferenciadas dos padrões hegemônicos, vigentes nas diversas sociedades nacionais.

É preciso, ainda, considerar de modo distinto a questão da modernidade na América do Sul e mesmo na América Latina, onde pulsam as mais diferentes tradições. Segundo Canclini, a América Latina é o lugar “onde as tradições ainda não se foram e a modernidade não terminou de chegar” (Canclini, 2008:77). Atualmente, a compreensão da cultura não se resume aos mecanismos de produção de identidade, mas também é importante considerar as estratégias para a produção de novos agenciamentos societários e valorativos.

De modo análogo, a cultura não deve ser pensada apenas no âmbito das políticas culturais estatais ou das propostas de acordos multilaterais, nem como mero produto, evento ou espetáculo, mas sim como processo permanente de criação de uma urdidura simbólica que permita o múltiplo entrecruzamento de experiências e tradições. Crê-se que só assim se poderá canalizar a emergência de identidades múltiplas, construídas no entre-lugar (Santiago, 2006) de diferentes discursos e de processos diferenciados de incorporação da modernidade.

Categorias como fronteira, entre-lugar, mistura, hibridismo, impureza e heterogeneidade podem melhor iluminar nossa realidade e, quiçá, nosso destino. Porém, essa trajetória só será possível se houver vinculação entre cultura e direitos humanos em geral, e entre cultura e direitos culturais em particular.

Nesse sentido, também será necessário construir estratégias e canais de expressão próprios, de modo a possibilitar que os mais diferentes e diversos grupos sociais presentes no continente possam desfrutar de reconhecimento e visibilidade no espaço público, e ainda, conforme argumenta Hannah Arendt, que tais grupos possam expressar não apenas suas identidades, mas também exercer sua palavra e sua ação nesse espaço público e, principalmente, ser reconhecidos como legítimos.

Cabe lembrar que uma forma contundente de violência simbólica é a própria invisibilidade de determinados grupos sociais na sociedade contemporânea, como tem sido o caso de indígenas, negros e mulheres no Brasil ao longo de vários séculos, e também de muitos grupos étnicos e de migrantes em praticamente todos os países sul-americanos. Em suma, o que se verifica ao longo da história é que os grupos subalternos inexoravelmente tendem à invisibilidade. Dessa forma, precisamos deixar de pensar as práticas culturais e o desenvolvimento sul-americano apenas como emergentes. É preciso também mudar a postura e pensar a América do Sul como espaço insurgente, onde alternativas podem surgir e um novo espaço público pode se desenvolver – um novo espaço público onde é possível atuar e agir em conjunto, mesclando a diversidade, para que de fato irrompa a construção de novas subjetivas coletivas.

Atualmente, há em curso experiências de criações coletivas transacionais e translocais, nas áreas de música, cinema, vídeo, teatro e produção de conhecimento, muitas dessas práticas viabilizadas por acordos de cooperação técnico-científica entre institutos e universidades sul-americanas.

Ratificamos que é mais produtivo pensar a cultura como arena de lutas simbólicas, onde muitos embates são travados e o horizonte do possível pode se ampliar para além dos limites então existentes.

Assim, pensar a cultura como campo de possibilidades interativas e propositivas a respeito da organização dos interesses coletivos é uma tarefa necessária para todos os atores envolvidos no processo de integração.

Atualmente, o que se constata é uma valorização da cultura não apenas como um conjunto de práticas cotidianas e processos permanentes de produção de significados, mas, sobretudo, como fonte e repertório para a produção de novos valores.

Concebida nesses termos, a cultura pode gerar relações renovadas e profícuas com a política, o que, necessariamente implicará enfatizar a compreensão da política como a gestão dos interesses coletivos de grupos sociais ou nações.

Isso posto, constata-se que a discussão sobre o que é o político deixa de remeter-se exclusivamente à dimensão institucional relacionada às atividades do Estado e dos partidos e assume um enraizamento social que suscita a organização de associações, de grupos coletivos e de criações conjuntas, fortalecendo o tecido social.

Mais uma vez, o que se deseja ressaltar é a importância significativa dos processos de democratização política nas sociedades sul-americanas, que permitiram uma nova dinâmica e um novo reordenamento da sociedade civil. E foi esse novo reordenamento que impulsionou a dinamização da cultura, uma vez que as práticas culturais, mais do que outras instâncias, ensejam e contribuem para a organização dos interesses coletivos.

Porém, a dimensão política pressupõe, por parte dos responsáveis pela elaboração de políticas, a capacidade de articular novos sistemas de representação sobre si e sobre os “outros” – os hegemônicos e os subalternos.

Supondo uma agenda de pesquisas e estudos, seria importante observar como novos atores intervêm no espaço público por meio de uma luta simbólica travada para produzir representações alternativas e identidades sustentáveis, ancoradas em valores coletivos densamente compartilhados que passam a alterar a distribuição de poder.

Crê-se, em suma, que será por intermédio desse processo que novas identidades poderão acionar as estratégias políticas, enraizando-as na tessitura da cultura, na qual efetivamente se desenrola a luta para impor os sistemas de representação vigentes em determinado momento histórico.

É possível que assim se possa intervir nas políticas culturais que contribuem para expressar de forma sincera a multiplicidade de tradições culturais e das manifestações estéticas dos mais diferentes grupos existentes nas sociedades sul-americanas.

Desse modo, a integração do continente passa inexoravelmente pela necessidade do que Gramsci chamou de “produção de sentido comum” (apud Quijano, 2001). Para tanto, é importante produzir e implementar operações de gramática de reconhecimento mútuo entre diferentes grupos e diferentes países. Políticas culturais devem ser interpretadas como vetores visando a construção de valores coletivos.

Sem a sustentação de valores culturais compartilhados – e este é um fato comprovado historicamente – não haverá acordo coletivo durável e consistente no continente sul-americano.

A cultura não é apenas uma “reserva de valor”, mas um repertório produtivo que passa a agenciar novas responsabilidades coletivas na construção de um continente justo e democrático.

* Mariza Veloso é pós-doutora em antropologia urbana pela New York University, doutora em antropologia cultural pela Universidade de Brasília e professora da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco – Ministério das Relações Exteriores.

- Texto originalmente publicado no jornal Le Monde, edição nacional.

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