Como foi que este levante triunfou, quando muitas outras tentativas em muitos outros países falharam? E, logo, quem serão os vencedores e os perdedores na Tunísia, em outras partes do mundo árabe, e no sistema-mundo completo?
Por Immanuel Wallerstein
[08 de fevereiro de 2011 - 11h56]
A revolta árabe de 1916 foi liderada por Sharif Hussein Bin Ali em direção à independência árabe do império otomano. Os otomanos foram expulsos. No entanto, a grande revolta foi cooptada pelos britânicos e franceses. Depois de 1945, gradualmente, os vários Estados árabes se fizeram membros independentes da ONU. Mas, na maioria dos casos, sua independência foi cooptada pelos Estados Unidos, sucessor da Grã-Bretanha como controlador externo, tendo a França mantido um papel menor no Magrebe e no Líbano.
E a segunda revolta árabe já está cozinhando há alguns anos. No mês passado ela obteve uma injeção substancial com os bem-sucedidos levantes da juventude tunisiana. Quando existem jovens corajosos que arriscam sua vida para se levantar contra um regime autoritário e super-corrupto e são bem sucedidos, de fato, em derrubar o presidente, temos que aplaudir. Independentemente do que venha depois, foi um bom momento para a humanidade. A questão é sempre, o quê vem depois?
Na realidade são duas perguntas. Como foi que este levante triunfou, quando muitas outras tentativas em muitos outros países falharam? E, logo, quem serão os vencedores e os perdedores na Tunísia, em outras partes do mundo árabe, e no sistema-mundo completo?
Não é fácil rebelar-se contra um regime autoritário. O regime tem armamento e dinheiro a sua disposição, e normalmente pode suprimir com facilidade as tentativas de desafiá-lo que ocorrem nas ruas. Atos simbólicos, como a auto-imolação do vendedor ambulante em um povoado tunisiano remoto, Mohamed Bouazizi, em protesto contra os extravagantes atos dos agentes do regime, podem incentivar outros a protestarem, como ocorreu na Tunísia. Mas para que o dito ato conduza à derrocada do regime, este deve ter fissuras.
Neste caso, é claro que existiam tais fissuras. Nem o exército nem a polícia estavam preparados para disparar contra os manifestantes, e deixaram esta tarefa para a guarda presidencial de elite. Não foi suficiente, e o presidente Zine el-Abidine Ben Ali e sua família tiveram que fugir, e só encontraram refugio na Arábia Saudita. Que havia fissuras no regime, isto fica claro pelo feito de que ao tentar sobreviver à tormenta, as principais figuras do partido de Ben Ali se certificaram de prender a figura chave da maquinaria repressiva, Abdelwahab Abdallah, garantindo que ele não os prendesse. Lembremos como foi que, depois da morte de Stalin, seus sucessores prenderam Lavrenti Beria de imediato, pela mesma razão.
Obviamente, depois que Ben Ali fugiu, o mundo inteiro aplaudiu, com a exceção de Kaddafi na Líbia e Berlusconi na Itália, que continuaram defendendo as virtudes do ditador. O lugar de onde vinha o principal respaldo exterior de Ben Ali, a França, se envergonhou o suficiente a ponto de confessar seus erros de juízo. Os Estados Unidos, tendo deixado a Tunísia nas supostamente seguras mãos dos franceses, não sentiram a necessidade de oferecer desculpas semelhantes.
Como todo o mundo observa, o exemplo da Tunísia deu um impulso para que em outras ruas árabes de outras partes fosse trilhado um caminho semelhante; os exemplos mais notáveis no momento estão no Egito, Iêmen e Jordânia. Enquanto escrevo, é pouco certo que o presidente do Egito, Hosni Mubarak, seja capaz de sobreviver.
Quem são os vencedores e os perdedores? Não saberemos pelo menos nos próximos seis meses, talvez mais, quem chegou, de fato, ao poder na Tunísia, no Egito, na verdade em todo o mundo árabe. Os levantes espontâneos criam uma situação como a da Rússia de 1917 quando, segundo a famosa frase de Lênin, o poder está nas ruas, e portanto uma força decidida e organizada pode tomá-lo, que foi o que fizeram os bolcheviques.
A real situação política em cada um dos Estados árabes é diferente. Não há Estado árabe na atualidade que tenha um partido radical, laico, organizado, como os bolcheviques, que esteja pronto para tentar tomar o poder. Há vários movimentos liberais burgueses que gostariam de ter um papel maior, mas poucos parecem ter uma base importante. Os movimentos mais organizados são os islamitas. Mas, estes movimentos não têm uma só cor. Suas versões de um Estado islâmico vão dos relativamente tolerantes com outros grupos, como o que existe agora na Turquia, à severa versão da sharia (como os talibãs executam no Afeganistão), com variedades intermediárias como a Irmandade Muçulmana no Egito.
Mas o que acontece com os poderes externos, que estão profundamente envolvidos em tentar controlar a situação? O principal ator externo é os Estados Unidos. Um segundo ator é o Irã. Todos os outros – Turquia, França, Grã-Bretanha, Rússia e China – são menos importantes sem deixarem de ser relevantes.
O grande perdedor da segunda revolta árabe é claramente os Estados Unidos. Constata-se isso com a incrível hesitação do governo estadunidense neste momento. Os EUA (como qualquer outra das potências importantes do mundo) colocam um critério acima de todos os demais: os regimes que são amigáveis. Washington quer estar do lado dos vencedores, sempre e quando o vencedor não seja hostil. Que fazer então numa situação como a do Egito, que hoje é virtualmente um Estado patrocinado pelos Estados Unidos? Washington se encontra reduzido a fazer chamados públicos em nome de mais democracia, de que não haja violência, e de negociações. Depois de grandes encenações, parecem ter dito ao exército egípcio para que não envergonhe os Estados Unidos, disparando contra pessoas demais. Porém, poderá Mubarak sobreviver sem disparar contra muita gente?
A segunda revolta árabe ocorre em meio a uma caótica situação mundial na qual imperam três características: uma queda dos padrões de vida de dois terços da população mundial, aumentos escandalosos nos salários atuais de uma camada elevada relativamente pequena e uma séria decadência do poder efetivo da assim chamada superpotência, Estados Unidos. A segunda revolta árabe, não importa como resulte, irá corroer ainda mais o poderio estadunidense, especialmente no mundo árabe, precisamente porque a única base segura de popularidade políticas nestes países, hoje, é a oposição a que Washington interfira em seus assuntos. Mesmo para aqueles que normalmente querem o envolvimento dos Estados Unidos, e dependem deste, torna-se perigoso continuar com esta postura.
O maior vencedor é o Irã. Sem dúvida o regime iraniano é visto com considerável suspeita, em parte porque não é árabe e em parte porque é xiita. No entanto, foi a política estadunidense que deu ao Irã seu presente maior, a derrocada de Saddam Hussein. Saddam era o mais feroz e eficaz inimigo do Irã. Os líderes iranianos provavelmente proferem alguma bênção diária para George W. Bush por seu maravilhoso presente. Construíram sobre este golpe de sorte uma inteligente política com a qual demonstraram estar prontos para dar respaldo a movimentos não xiitas tais como Hamas, sempre que confrontarem fortemente Israel e a intromissão estadunidense na região.
Um vencedor menor é a Turquia, que foi uma maldição para as forças populares no mundo árabe pela dupla razão de que é herdeira do império otomano e uma aliada próxima dos Estados Unidos. O atual regime eleito popularmente, um movimento islamita que não busca impor a lei da sharia sobre toda a população, mas sim, unicamente, o droit de cité para a conformidade islâmica, moveu-se em direção a apoiar a segunda revolta árabe, ainda com um risco de comprometer suas anteriores boas relações com Israel e Estados Unidos.
E, é claro, os maiores vencedores desta segunda revolta árabe serão, com o tempo, os povos árabes.
Publicado por Rebelión. Foto por Epa/Lucas Dolega.
E a segunda revolta árabe já está cozinhando há alguns anos. No mês passado ela obteve uma injeção substancial com os bem-sucedidos levantes da juventude tunisiana. Quando existem jovens corajosos que arriscam sua vida para se levantar contra um regime autoritário e super-corrupto e são bem sucedidos, de fato, em derrubar o presidente, temos que aplaudir. Independentemente do que venha depois, foi um bom momento para a humanidade. A questão é sempre, o quê vem depois?
Na realidade são duas perguntas. Como foi que este levante triunfou, quando muitas outras tentativas em muitos outros países falharam? E, logo, quem serão os vencedores e os perdedores na Tunísia, em outras partes do mundo árabe, e no sistema-mundo completo?
Não é fácil rebelar-se contra um regime autoritário. O regime tem armamento e dinheiro a sua disposição, e normalmente pode suprimir com facilidade as tentativas de desafiá-lo que ocorrem nas ruas. Atos simbólicos, como a auto-imolação do vendedor ambulante em um povoado tunisiano remoto, Mohamed Bouazizi, em protesto contra os extravagantes atos dos agentes do regime, podem incentivar outros a protestarem, como ocorreu na Tunísia. Mas para que o dito ato conduza à derrocada do regime, este deve ter fissuras.
Neste caso, é claro que existiam tais fissuras. Nem o exército nem a polícia estavam preparados para disparar contra os manifestantes, e deixaram esta tarefa para a guarda presidencial de elite. Não foi suficiente, e o presidente Zine el-Abidine Ben Ali e sua família tiveram que fugir, e só encontraram refugio na Arábia Saudita. Que havia fissuras no regime, isto fica claro pelo feito de que ao tentar sobreviver à tormenta, as principais figuras do partido de Ben Ali se certificaram de prender a figura chave da maquinaria repressiva, Abdelwahab Abdallah, garantindo que ele não os prendesse. Lembremos como foi que, depois da morte de Stalin, seus sucessores prenderam Lavrenti Beria de imediato, pela mesma razão.
Obviamente, depois que Ben Ali fugiu, o mundo inteiro aplaudiu, com a exceção de Kaddafi na Líbia e Berlusconi na Itália, que continuaram defendendo as virtudes do ditador. O lugar de onde vinha o principal respaldo exterior de Ben Ali, a França, se envergonhou o suficiente a ponto de confessar seus erros de juízo. Os Estados Unidos, tendo deixado a Tunísia nas supostamente seguras mãos dos franceses, não sentiram a necessidade de oferecer desculpas semelhantes.
Como todo o mundo observa, o exemplo da Tunísia deu um impulso para que em outras ruas árabes de outras partes fosse trilhado um caminho semelhante; os exemplos mais notáveis no momento estão no Egito, Iêmen e Jordânia. Enquanto escrevo, é pouco certo que o presidente do Egito, Hosni Mubarak, seja capaz de sobreviver.
Quem são os vencedores e os perdedores? Não saberemos pelo menos nos próximos seis meses, talvez mais, quem chegou, de fato, ao poder na Tunísia, no Egito, na verdade em todo o mundo árabe. Os levantes espontâneos criam uma situação como a da Rússia de 1917 quando, segundo a famosa frase de Lênin, o poder está nas ruas, e portanto uma força decidida e organizada pode tomá-lo, que foi o que fizeram os bolcheviques.
A real situação política em cada um dos Estados árabes é diferente. Não há Estado árabe na atualidade que tenha um partido radical, laico, organizado, como os bolcheviques, que esteja pronto para tentar tomar o poder. Há vários movimentos liberais burgueses que gostariam de ter um papel maior, mas poucos parecem ter uma base importante. Os movimentos mais organizados são os islamitas. Mas, estes movimentos não têm uma só cor. Suas versões de um Estado islâmico vão dos relativamente tolerantes com outros grupos, como o que existe agora na Turquia, à severa versão da sharia (como os talibãs executam no Afeganistão), com variedades intermediárias como a Irmandade Muçulmana no Egito.
Mas o que acontece com os poderes externos, que estão profundamente envolvidos em tentar controlar a situação? O principal ator externo é os Estados Unidos. Um segundo ator é o Irã. Todos os outros – Turquia, França, Grã-Bretanha, Rússia e China – são menos importantes sem deixarem de ser relevantes.
O grande perdedor da segunda revolta árabe é claramente os Estados Unidos. Constata-se isso com a incrível hesitação do governo estadunidense neste momento. Os EUA (como qualquer outra das potências importantes do mundo) colocam um critério acima de todos os demais: os regimes que são amigáveis. Washington quer estar do lado dos vencedores, sempre e quando o vencedor não seja hostil. Que fazer então numa situação como a do Egito, que hoje é virtualmente um Estado patrocinado pelos Estados Unidos? Washington se encontra reduzido a fazer chamados públicos em nome de mais democracia, de que não haja violência, e de negociações. Depois de grandes encenações, parecem ter dito ao exército egípcio para que não envergonhe os Estados Unidos, disparando contra pessoas demais. Porém, poderá Mubarak sobreviver sem disparar contra muita gente?
A segunda revolta árabe ocorre em meio a uma caótica situação mundial na qual imperam três características: uma queda dos padrões de vida de dois terços da população mundial, aumentos escandalosos nos salários atuais de uma camada elevada relativamente pequena e uma séria decadência do poder efetivo da assim chamada superpotência, Estados Unidos. A segunda revolta árabe, não importa como resulte, irá corroer ainda mais o poderio estadunidense, especialmente no mundo árabe, precisamente porque a única base segura de popularidade políticas nestes países, hoje, é a oposição a que Washington interfira em seus assuntos. Mesmo para aqueles que normalmente querem o envolvimento dos Estados Unidos, e dependem deste, torna-se perigoso continuar com esta postura.
O maior vencedor é o Irã. Sem dúvida o regime iraniano é visto com considerável suspeita, em parte porque não é árabe e em parte porque é xiita. No entanto, foi a política estadunidense que deu ao Irã seu presente maior, a derrocada de Saddam Hussein. Saddam era o mais feroz e eficaz inimigo do Irã. Os líderes iranianos provavelmente proferem alguma bênção diária para George W. Bush por seu maravilhoso presente. Construíram sobre este golpe de sorte uma inteligente política com a qual demonstraram estar prontos para dar respaldo a movimentos não xiitas tais como Hamas, sempre que confrontarem fortemente Israel e a intromissão estadunidense na região.
Um vencedor menor é a Turquia, que foi uma maldição para as forças populares no mundo árabe pela dupla razão de que é herdeira do império otomano e uma aliada próxima dos Estados Unidos. O atual regime eleito popularmente, um movimento islamita que não busca impor a lei da sharia sobre toda a população, mas sim, unicamente, o droit de cité para a conformidade islâmica, moveu-se em direção a apoiar a segunda revolta árabe, ainda com um risco de comprometer suas anteriores boas relações com Israel e Estados Unidos.
E, é claro, os maiores vencedores desta segunda revolta árabe serão, com o tempo, os povos árabes.
Publicado por Rebelión. Foto por Epa/Lucas Dolega.
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